segunda-feira, 24 de janeiro de 2011


Tese de doutorado revela bastidores da Wikipédia Lusófona

A Wikipédia fez dez anos no dia 15, mas cada um dos 262 idiomas presentes na enciclopédia livre tem sua própria história.
A edição de língua portuguesa, a Wikipédia Lusófona, nasceu em maio de 2001 e hoje conta com mais de 660 mil artigos.
A brasileira Telma Johnson é pesquisadora das novas mídias e mergulhou na comunidade on-line da Wikipédia Lusófona entre 2006 e 2009 para escrever sua tese de doutorado em Comunicação e Sociabilidade Contemporâneas pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). O resultado é o livro "Nos bastidores da Wikipédia lusófona: Percalços e conquistas de um projeto de escrita coletiva on-line" (ed. E-Paper, 2010).

Em conversa com a Folha, a pesquisadora revela bastidores da Wikipédia Lusófona, como tensões entre editores antigos e novatos que culminaram em xingamentos, a presença marcante de brasileiros e portugueses e tentativas frustradas de dividi-la entre português europeu e brasileiro.

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Folha - Por que a escolha do tema Wikipédia Lusófona para a tese de doutorado?

Johnson - Na verdade, venho estudando as novas tecnologias da informação e comunicação desde 1995 quando fui fazer o meu mestrado nos Estados Unidos em Jornalismo Digital. Desde aquela época, já percebia o grande potencial da internet como objeto de pesquisa. A minha curiosidade intelectual pelas novas práticas e processos comunicacionais on-line acabou fazendo com que eu decidisse estudar a Wikipédia Lusófona por ser um fenômeno social completamente novo que difere radicalmente das lógicas do mercado e do aparelho estatal. 

Qual foi seu objetivo?

Na minha pesquisa de doutorado busquei compreender e explicar quais fatores explicam o surgimento e determinam a sustentação do fenômeno de escrita coletiva em redes sociais voluntárias on-line. 

A Wikipédia desafiou as enciclopédias tradicionais ao propor a popularização da produção de conhecimento: qualquer um, em tese, pode escrever sobre qualquer assunto, sem ser especialista. Isso é refletido na academia?

Sim, ainda há uma reação muito forte na academia contra a Wikipédia exatamente porque é um projeto aberto à participação de qualquer pessoa, independente de faixa etária, ocupação ou grau de escolaridade. Isso significa que tanto o cidadão comum como o especialista podem participar e contribuir criando verbetes, escrevendo e editando artigos. O problema é que a cultura segundo a qual só os especialistas têm o dom da palavra, do saber, está muito arraigada entre nós. É o modelo das enciclopédias tradicionais, que sempre foram escritas por acadêmicos e especialistas em suas áreas de competência.


Você sentiu uma reação da academia à sua pesquisa?

Acredito que, mais recentemente, já está havendo um grau maior de aceitação quanto ao valor do projeto Wikipedia, mas lembro que quando comecei a minha pesquisa em 2006 não eram poucos os professores e pesquisadores que torciam o nariz cada vez que eu falo do meu objeto de pesquisa. Alguns declaradamente chegavam a dizer que era um projeto que não ia vingar. 

Em sua tese, há entrevistas com wikipedistas brasileiros e portugueses. Por que não de outros países? 

A minha intenção inicial era entrevistar wikipedistas de todas as nacionalidades que fazem parte do projeto lusófono. Apesar de a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) estar distribuída em quatro continentes e ser formada por oito países, durante a minha pesquisa Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe não registravam qualquer participação na Wikipédia. Nos países africanos, havia a participação de apenas dois wikipedistas de Cabo Verde e três de Moçambique. Na Ásia, havia apenas dois wikipedistas do Timor Leste. Tentei contatar todos eles inúmeras vezes, inclusive com a ajuda de alguns administradores brasileiros e portugueses, mas não recebi nenhuma resposta, infelizmente.


Você sabe por que eles não responderam?

Acredito que as limitações e dificuldades de acesso à internet tenham sido a razão principal, uma vez que a pobreza e a falta de investimentos em infraestrutura são pontos em comum entre os cidadãos dessas nações. Cheguei a tratar desse problema específico nas entrevistas que fiz com wikipedistas brasileiros e portugueses. É um desafio que inquieta muitos wikipedistas, e a maioria dos entrevistados revelou que as dificuldades estão além da Wikipédia, uma vez que o problema da inclusão está diretamente relacionado às condições políticas, econômicas, culturais e tecnológicas, especialmente dos países africanos.


Há muita tensão entre as comunidades brasileira e portuguesa, as maiores da Wikipédia Lusófona?

De fato, esse é um tipo de conflito recorrente e que atingiu o ápice de discórdias na página de discussão que trata das versões da língua portuguesa nos anos de 2005, 2006 e 2007 registrando três propostas formais de cisão do projeto e criação de uma Wikipédia na versão do português de Portugal e outra versão do português do Brasil. 

Quais foram as consequências dessas tentativas?

Em função desse conflito específico, muitos wikipedistas abandonaram o projeto, mas entre os que ficaram os ânimos se acalmaram após a intervenção do Sub-Comitê de Línguas, decidindo, em abril de 2007, que o projeto lusófono não sofreria cisão. Embora os wikipedistas reconheçam que o problema não esteja resolvido, eles acreditam que os editores estão cada vez mais aprendendo a conviver com as diferenças e desenvolvendo o espírito da boa vontade, tanto do lado dos brasileiros como dos portugueses.
O conflito é visto hoje como uma consequência natural do desenho do projeto geral Wikipedia, que não é baseado em enciclopédia por países mas em enciclopédias baseadas em códigos de língua reconhecidas pelo padrão internacional ISO 639, aprovado em 1976 e reescrito em 2002.

Alguns wikipedistas comentam casos de brigas entre veteranos e novatos. Isso apareceu na sua pesquisa?

Um dos achados mais importantes dos dados empíricos da minha pesquisa, emergidos justamente dos comentários espontâneos das entrevistas, foi a existência do sério e permanente conflito entre wikipedistas antigos e novatos. Essa revelação dos entrevistados surgiu em várias respostas que trataram das expectativas em torno do futuro da Wikipédia Lusófona, dos conflitos em torno da língua portuguesa e do crescimento dos níveis hierárquicos dentro da estrutura interna do projeto. Tanto os wikipedistas antigos como os novatos consideram que os conflitos entre essas duas categorias são atualmente o principal fator de distúrbio da rede social e a maior ameaça à continuidade do projeto.

Como se dão esses conflitos?

Os conflitos se originam nas páginas de conteúdo enciclopédico escritas ou editadas por editores com menos experiência no projeto que se deparam, frequentemente, com alterações significativas ou mesmo eliminação de conteúdo que inseriram, feitas por editores mais experientes. É assim que se estabelece o que já é conhecido na rede como "guerra das edições", que se caracteriza como um ciclo interminável de reversões de conteúdo e discussões acirradas nas respectivas páginas de discussão dos artigos.
Em alguns casos os próprios editores novatos admitem ter cometido falhas por desconhecerem todas as regras e o vasto leque de políticas de edição, apresentam desculpas e tornam-se mais atentos em suas contribuições. Em outros casos, as reações são menos pacíficas e os ataques a editores antigos resultam em ofensas pessoais e uso de nomes depreciativos que vão de "fascista" a "imbecil".

Quais são as críticas mais frequentes?

Que os editores antigos, investidos ou não em cargos de autoridade no projeto, são intolerantes e impacientes com os recém-chegados. Os novatos percebem que os editores antigos se consideram os "donos do projeto", no sentido daquela velha máxima de que "antiguidade é posto", e que eles têm uma ideia de que a maioria dos novatos são aventureiros, vândalos.
Um editor experiente admite que muitos editores antigos em cargo de autoridade são responsáveis pelo desdobramento dos conflitos porque, ao determinarem banimentos aos novatos, acabam por suscitar a ira desses editores e ações propositais de vandalismo como forma de vingança.

E por parte dos editores mais experientes?

Os editores antigos admitem que a elogiada filosofia do projeto, aberto à livre participação, apresenta o paradoxo de atrair uma multidão de pessoas e assim causar o inchaço do projeto e o surgimento de novos tipos de enfrentamentos entre os participantes.
Segundo eles, há muitos novatos que se revelam em pouco tempo importantes para o desenvolvimento do projeto, pela seriedade e alto nível de contribuições tanto quantitativas como qualitativas, mas muitos são considerados despreparados tanto para contribuir com conteúdo enciclopédico de boa qualidade como para aceitar críticas, digeri-las e defender suas contribuições de forma educada, racional e argumentativa.

Entrevista com Profª Dra. Telma Johnson, publicada em 18/01/2011
Colaboração de Carlos Oliveira para A FOLHA


Por Giselle Bezerra

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